Marinês Lopes de Sousa, 58 anos, é coletora de sementes, extrativista e liderança política da Reserva Extrativista Rio Xingu, uma área protegida situada numa das regiões mais biodiversas da Amazônia. Vivendo no interior da floresta desde a adolescência, em território remoto e sem escola, Marinês abriu as portas de casa e criou todas as condições necessárias para que as crianças da comunidade, incluindo os seus seis filhos, pudessem estudar e ser alfabetizadas. Durante dois anos, sua casa abrigou a primeira escola da comunidade. A intuição sobre o valor das letras e do letramento, convertida em projeto realizado por esta mulher que apenas pôde aprender a escrever o próprio nome, foi a primeira expressão de sua vocação para o engajamento político – uma aptidão que sempre esteve a serviço do desenvolvimento da coletividade e que abriu caminho para o protagonismo comunitário de Marinês.
Liderança e envolvimento comunitário
Agora, como primeira mulher eleita para a presidência da Associação da Resex Rio Xingu, ela comemora a mais recente conquista de seu mandato: o projeto de estruturação de uma cadeia de sementes florestais que, desde o ano passado, beneficia a sua comunidade e outros quatro territórios tradicionais da Amazônia paraense. Este projeto de intervenção está sendo desenvolvido no âmbito do Projeto Bacia Amazônica (OTCA/PNUMA/GEF), executado pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA em parceria com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA e o Instituto Socioambiental – ISA, gerando renda para famílias de cinco áreas protegidas, a Resex Rio Xingu, presidida por Marinês, a Resex Rio Iriri, a Resex Riozinho do Anfrísio e as Terras Indígenas Arara e Xipaya. Juntas, elas ocupam mais de 1,8 milhão de hectares da Terra do Meio, uma região de nove milhões de hectares, de tamanho equivalente ao de Portugal, composta por um mosaico de áreas protegidas, que se destaca pela concentração de grande diversidade biológica e cultural.
Aproveitando a abundância de sementes nativas da região, a intervenção se vale dos conhecimentos tradicionais dos povos da floresta para a estruturação da cadeia de sementes combinada à recuperação de áreas degradadas às margens do rio Xingu, um dos mais extensos e importantes afluentes do Amazonas. O serviço de restauração ecológica, considerado fundamental para a regulação hídrica, apoia-se aqui em um mecanismo de pagamento por serviços ambientais. “Gerar renda com a coleta de sementes é um sonho antigo das comunidades, que agora se realiza junto com outra de nossas demandas, que é a recuperação de áreas degradadas por fazendas que foram abandonadas. Nós ganhamos duplamente, tanto como coletores quanto como prestadores de serviços ambientais, através da semeadura de restauração”, afirma Marinês.
O arranjo produtivo e comercial
A demanda por sementes florestais pelo mercado crescente da restauração ecológica representa uma grande oportunidade de geração de renda sustentável para as comunidades e povos tradicionais da Amazônia. O desafio é a estruturação de uma cadeia de produção, que resulta complexa diante da extensão das áreas de floresta e de outros fatores associados, como a sazonalidade das sementes. Por isso, como primeiro passo para garantir o acesso das comunidades beneficiárias do projeto a esse mercado sustentável de forma ágil e consistente, a cadeia de sementes está sendo estruturada dentro da Rede Terra do Meio,um arranjo produtivo e comercial bem-sucedido de produtos florestais não madeireiros que existe há quinze anos.
Formada por 20 associações de povos indígenas e comunidades extrativistas, a Rede Terra do Meio conta com uma infraestrutura com 23 paióis para estocagem de produtos, 12 cantinas e seis miniusinas de beneficiamento, favorecendo diretamente mais de 3.200 pessoas. Ela traz para o projeto experiência e competência na geração de renda sustentável, no fortalecimento da autonomia das comunidades, na defesa dos territórios e no acesso ao mercado através de parcerias que valorizam a flora regional e os conhecimentos tradicionais a ela associados.
Em 2023, primeiro ano da intervenção, foram estabelecidos acordos de gestão com as famílias participantes da cadeia de sementes. Os coletores e as cantinas da Rede Terra do Meio receberam orientações técnicas para o aprimoramento da coleta e do fornecimento, estabelecendo regras e procedimentos para a sua operacionalização, a fim de garantir a qualidade da matéria-prima.
Mais de 40 tipos de sementes foram entregues no galpão central da Rede Terra do Meio, gerando mais de R$40.000,00 de renda para as famílias. A intervenção garantiu recursos financeiros para o capital de giro das cantinas a fim de que elas pudessem pagar imediatamente pelas sementes coletadas. A medida assegura o engajamento dos produtores e fortalece a cadeia. O preço pago pelas sementes passou por uma avaliação técnica e foi considerado satisfatório.
Além disso, foi assinado um termo de cooperação com a Universidade Federal do Pará (UFPA), permitindo que as sementes fossem transferidas e armazenadas em câmara fria na cidade de Altamira (PA), assegurando análises laboratoriais da matéria-prima.
Restauração de áreas degradadas
A compra de sementes florestais para a restauração de um total de 50 hectares de áreas degradadas na Terra do Meio foi outra forma encontrada pela intervenção para favorecer a estruturação da cadeia, alavancando a sua sustentabilidade. Nas margens dos rios Xingu e Iriri, há muitas fazendas de criação de gado que se instalaram de forma ilegal na região e foram desocupadas com a criação das unidades de conservação, deixando nos territórios vastas áreas de pastos deteriorados, todas elas passíveis de restauração.
Em 2023, a intervenção começou o processo de restauração dos primeiros 25 hectares de área degradada, o pasto abandonado de uma antiga fazenda situada na beira do Xingu. Quando as chuvas chegaram, com dois meses de atraso, as famílias beneficiárias da intervenção fizeram a semeadura direta com a “muvuca”, uma mistura de mais de 40 espécies nativas e de adubação verde, selecionadas e calculadas ecologicamente para criar uma vegetação estratificada e densa que imita a floresta e tem custo significativamente mais baixo do que o plantio com mudas.
Mais de 600 mil sementes foram plantadas por hectare pelas famílias do projeto, que se beneficiaram também com o pagamento pelo serviço ambiental prestado. Espera-se que, após quatro anos, cada hectare conte com cerca de 3 mil árvores, perfazendo um total de aproximadamente 75 mil espécimes nos 25 hectares já reabilitados.
Em 2024, outros 25 hectares de área degradada serão recuperados com a mesma quantidade de sementes, devendo atingir, em número de árvores, o equivalente ao esperado para os primeiros 25 hectares reabilitados. Sendo assim, a intervenção deverá totalizar 150 mil árvores plantadas, as quais formarão, em vinte anos, uma floresta diversa.
A implementação de projetos de restauração de habitats nativos combate a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas, aumentando o sequestro de carbono atmosférico. Com o manejo sustentável, a intervenção da Terra do Meio tem potencial de captura entre 1.500 e 13.500 KT de carbono e capacidade para fornecer até 15 bilhões de litros de água por dia para a atmosfera, favorecendo o regime de chuvas e a agricultura no Centro-Oeste, no Sul e no Sudeste do Brasil.
O pagamento por serviços socioambientais
A par e passo com as atividades de coleta de sementes e restauração de áreas degradadas, o Instituto Socioambiental (ISA), executor da intervenção e antigo parceiro das comunidades da Terra do Meio, tem provocado a construção de políticas públicas para garantir um mecanismo de pagamento por serviços socioambientais para os territórios tradicionais, o que favoreceria a cadeia de sementes florestais da região.
“Nós entendemos que a coleta de sementes florestais é uma das externalidades positivas resultantes do manejo de florestas e da ação coletiva dos povos tradicionais. É, portanto, uma contribuição socioambiental à conservação da Amazônia que precisa ser reconhecida na formulação de políticas públicas incentivadoras da continuidade desse tipo de contribuição através de mecanismos de PSA (Pagamento por Serviço Ambiental). Isso garantiria a sustentabilidade dessa e de outras cadeias de sementes florestais no longo prazo”, explica Roberto Rezende, coordenador do Programa Xingu do ISA.
Segundo ele, recursos provenientes de PSA irão para um fundo comunitário a ser administrado pela Rede Terra do Meio com o objetivo de alavancar ainda mais a cadeia das sementes. Para isso, tem sido promovido avanços na construção de entendimentos entre os diferentes atores da rede sobre princípios e diretrizes orientadoras para a aplicação dos recursos.
Sobre o Projeto Bacia Amazônica
O Projeto Bacia Amazônica é uma iniciativa regional dos oito países membros da OTCA que visa fortalecer a governança da água em nível nacional e regional, criando resiliência comunitária e protegendo os ecossistemas aquáticos para enfrentar as mudanças climáticas, bem como monitorar os recursos hídricos e os ecossistemas por meio de um Sistema Regional de Monitoramento Ambiental. Executado pela OTCA, o projeto é implementado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) com financiamento do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF).
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